Os fatos (em algum sentido)
Depois de sete décadas de conflito e ocupação ilegal do território da Palestina por parte do Estado de Israel, no dia 7 de outubro de 2023, as milicias armadas do Hamas atacaram por terra, ar e mar o sul do território ocupado por Israel.
Conseguiram atingir um quartel militar, mataram mais de 1.100 pessoas (um número indeterminado de mortes foi provocado por “fogo amigo” oriundo das Forças de “Defesa” de Israel) e fizeram 251 prisioneiros que foram levados para os túneis de Gaza. Tudo indicava que Israel tinha sido militarmente surpreendido e seu prestigioso serviço de inteligência enganado.
A resposta israelense demorou poucos dias, mas foi devastadora. Bombardeios indiscriminados transformaram a outrora esplendorosa Gaza em terra arrasada, provocando quase 45 mil mortes, na sua maioria mulheres e crianças, vítimas do macabro cálculo de danos colaterais “não desejados”, que justificou a morte de 100 inocentes para atingir um quadro do Hamas.
A um ano do início das hostilidades, o alegado direito de defesa de Israel transformou-se em sanguinário rito de vingança sem fim, com o aparente objetivo de manter Netanyahu no poder.
Alvejar lugares de culto, escolas, bibliotecas e universidades, assim como hospitais, refúgios e lugares indicados como seguros pelos próprios israelenses indica o propósito de extermínio. O alvo dos ataques não foi apenas o grupo armado, mas toda a população palestina da Faixa de Gaza.
O ataque a comboios humanitários, equipes da Médicos Sem Fronteira e agentes da ONU mostrou pouca preocupação tanto pela opinião pública internacional quanto pelas leis que regulam o uso da força em conflitos armados, o que está tipificado como crime de guerra.
Uma análise simples da operação, até este momento, permite a seguinte consideração: politicamente, o que a maioria dos analistas apontaram, é que, do ponto de vista de Israel, procurou-se melhorar os parcos índices de aceitação de Netanyahu por parte da população israelense.
Num primeiro momento, ele anunciou o ataque a Gaza com o objetivo de recuperar com vida os prisioneiros capturados pelo Hamas, mas, contraditoriamente, negou-se a negociar.
Verdade é que sentiu uma forte pressão dos familiares dos prisioneiros, que pediam negociações, mas conseguiu um apoio praticamente unânime da mídia e da sociedade internacionais — censurando a liberdade de expressão e acusando qualquer crítica como antissemita (embora os semitas sejam a maioria dos palestinos e não a maioria de europeus que conformam demograficamente o Estado de Israel).
Mas, com o passar do tempo e a visível carnificina de inocentes em Gaza, a opinião pública geral foi lentamente mudando, e o prestígio de Netanyahu, que não lograva o objetivo que justificava o genocídio, foi caindo novamente aos níveis anteriores ao 7 de outubro.
Assim, se o objetivo político do Hamas era recolocar o tema dos dois Estados soberanos com a criação do Estado palestino, esse objetivo foi plenamente alcançado, porque em todas as reuniões dos foros internacionais a criação do Estado palestino é apontado como a solução para o conflito e a consolidação da paz na região.
Do ponto de vista estratégico, o objetivo, declarado por Israel, era eliminar a facção armada do Hamas. Depois de um ano de combate e bombardeamento, de provocar o êxodo de 1,8 milhões de palestinos e deixar mais de 42 mil mortos, vários generais israelenses reconhecem que o objetivo de aniquilar o Hamas é inalcançável.
Se esse objetivo não foi alcançado, o que sim conseguiram foi diminuir drasticamente a capacidade operacional da organização, mas, em contrapartida, também deixaram um campo abonado de crianças e jovens, cujas famílias foram assassinadas, ávidos por integrar a milícia e se armar em procura de vingança.
Quase um ano após a incursão do Hamas e da resposta que reduziu consideravelmente a sua capacidade combativa, quando a popularidade de Netanyahu estava novamente caindo o mundo foi surpreendido pelo ataque terrorista aleatório de Israel no território do Líbano.
Simultaneamente explodiram mais de 3,5 mil pagers em mãos de libaneses, supostamente procurando membros do Hezbollah, mas matando até crianças. No dia seguinte, nos velórios das vítimas, explodem os walkie-talkies, deixando mais mortos e feridos.
O terror se implanta na sociedade libanesa e a desconfiança de todos os aparelhos eletrônicos se expande. Com esse ataque terrorista, um objetivo foi atingido imediatamente: o pânico da sociedade libanesa, que ficou aterrorizada e desorientada.
Mas outro objetivo militar também foi atingido, este mais estratégico: a organização do Hezbollah ficou sem comunicação confiável entre o comando e as bases e entre estas. Sem essa comunicação, a articulação e organização para o combate ficou seriamente comprometida.
O Hezbollah pareceu sem possibilidades de reagir ao ataque e se preparar para combater, ao mesmo tempo em que aumentava a tensão na fronteira sul do Líbano, com as tropas israelenses se agrupando e seus blindados se preparando para o ataque por terra.
Ataques aéreos de precisão eliminaram boa parte das lideranças do Hezbollah. Finalmente se inicia o ataque por terra, com a invasão do sul do Líbano por parte do exército israelense, abrindo uma segunda frente de combate, além da frente sul, contra o Hamas, na Faixa de Gaza. Para qualquer análise estratégica, abrir essa segunda frente pareceria um grande erro.
Uma outra perspectiva
Mas esses elementos, observados retrospectivamente os dados com que contamos, permite chegar a outras considerações ou outras perspectivas de análise que tentaremos explorar.
A execução sumária e precisa dos principais líderes das organizações, tanto do Hamas quanto do Hezbollah em Gaza, no Líbano, na Síria e no Irã, são uma clara prova da capacidade de penetração em profundidade do serviço de inteligência israelense nas organizações armadas inimigas.
Uma penetração que obviamente não se iniciou com o 7 de outubro de 2023, mas que alguns analistas datam na abertura das estruturas combativas iranianas para poder operar na Síria durante a guerra civil neste país.
A incorporação maciça de combatentes para atender à frente síria teria vulnerabilizado a organização, permitindo a infiltração por parte dos serviços de inteligência israelenses. Obviamente esta estratégia de infiltração não se faz de um dia para outro. Leva tempo desenhar a operação e preparar os quadros para se infiltrar.
Mas parece que eles conseguiram não apenas penetrar, mas também ascender na estrutura militar para chegar a se instalar nos quadros intermédios da organização e, inclusive, chegar a ocupar cargos de comando.
Mas, se a inteligência israelense é suficientemente profissional e competente para se infiltrar nas esferas mais íntimas de comando do Irã e nas entranhas do Hezbollah, como se explica ter sido surpreendida no 7 de outubro de 2023 pelo Hamas? É bem verdade que o Hamas é uma organização talvez mais fechada que o Hezbollah, que tem uma inserção social muito consolidada em Gaza, que conta com uma representação política respeitada pela sua comunidade e um bom sistema de inteligência.
Tudo isso poderia de alguma forma impermeabilizar a organização aos intentos de infiltração da inteligência israelense. Mas, como conseguiram organizar um assalto dessa magnitude, levado a cabo nessa profundidade por terra, mar e ar, de forma tão ousada e com tantos militantes, sem que a inteligência israelense tenha conseguido detectar a preparação, o treinamento, o armamento, a comunicação? Quantas cabeças da condução do sistema de inteligência israelense o governo israelense fez rolar por esse cochilo?
E se…
Não acredito em teorias da conspiração, mas, “que las hay, las hay”. Permita-me o leitor uma breve especulação, apenas como uma brincadeira do pensamento (Jorge Luis Borges dizia que o pensamento é o mais sofisticado dos brinquedos) como que para relaxar neste momento de tensão internacional.
E se desde um primeiro momento a ideia foi realizar uma guerra em duas frentes? Trata-se de uma das manobras estratégicas mais complicadas. A Alemanha viu-se obrigada, talvez pela sua situação geoestratégica, a tentar essa façanha em duas oportunidades, e em ambas fracassou.
Certamente os oficiais israelenses estudaram profundamente aquela história e planejaram muito cuidadosamente as ações que parecem estar se desenvolvendo no seu entorno.
Não poderiam atacar o Hezbollah no Líbano e deixar suas costas descobertas para o Hamas, que acudiria em auxílio daquele ou simplesmente aproveitaria a oportunidade para aplicar um duro golpe, pegando as forças de Israel entre duas frentes.
Não diria que o 07/10/23 foi provocado, mas talvez sim tenha sido aproveitado: por um lado, para operar por linhas exteriores, ganhando a guerra midiática, colocando-se como vítima; desenvolvendo uma férrea esfera de proteção ao consolidar internacionalmente a opinião de que qualquer ataque às investidas bélicas do governo israelense é um ataque antissemita.
Essa justificativa também foi aproveitada por vários governos para reprimir as manifestações contra o genocídio em Gaza. Por outro lado, esse ataque foi o gatilho para a operação em grande escala e profundidade sobre a população palestina, diminuindo drasticamente a capacidade de combate das milícias do Hamas.
Controlada esta frente, Israel iniciou os ataques terroristas indiscriminados dos pagers e walkie-talkies no Líbano, seguidos de bombardeios de precisão para atingir a alta condução e os Centros de Comunicação Comando e Inteligência (CCC+I) do Hezbollah, tanto no Líbano, como no Irã e na Síria.
O Hamas não foi aniquilado, mas sim reduzido na sua capacidade de ameaçar a segurança de Israel. Por sua vez, o Hezbollah pede o cessar-fogo incondicionalmente. Tudo indica que Israel resolveu a equação estratégica de combater em duas frentes. Mas deixando um rastro de ódio e ressentimento que garante uma resistência com a qual terá que lidar por muito tempo.
Começo do fim ou fim do começo?
Tenha sido por sentido de oportunidade ou longa e friamente preparado, é inegável o êxito estratégico das forças armadas israelenses na manobra operacional levada a cabo em duas frentes.
Com esse triunfo militar provisório e a possível melhora dos seus níveis de aceitação política em Israel, Netanyahu ficará satisfeito? Ou estará decidido, aproveitando o apoio incondicional dos Estados Unidos, a enfrentar ao Irã, o verdadeiro inimigo de ambos na região?
A guerra no Oriente Médio chegou ao seu fim ou apenas foram criadas as condições facilitadoras da ampliação para uma grande guerra regional? O silêncio do mundo árabe e a prudência de China e Rússia parecem deixar o campo aberto para a radicalização israelense na região. Quem será a próxima vítima?
(*) Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de “Max Weber: entre a paixão e a razão” (Editora Unicamp) e “A política armada: fundamentos da guerra revolucionária” (Editora Unesp).